As operações da Secretaria Municipal de Assistência Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, de recolhimento das crianças e adolescentes, foram intensificadas com a regulamentação de um Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social ao final de maio do presente ano (Resolução SMAS nº 20 de 27/5/2011). Tais medidas surpreenderam a tantos que há muito tempo se dedicam a refletir, formular e executar ações de promoção e defesa dos direitos de nossas crianças e de implementação de políticas públicas sustentadas no marco legal da saúde/saúde mental, da assistência social e da política para os direitos humanos da infância e adolescência, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, com base em toda uma legislação construída e consolidada a partir dos anos 1990, de forma participativa e democrática.
Além disso, a Resolução SMAS nº 20 desconsidera previsões legais e regulamentares, tais como:
1. Lei 10.216 (04/06/2001), que regulamenta a política de saúde mental e prevê, em seu artigo 9º, que “A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários”
2. Provimentos nº 4 (26/04/2010) e nº 9 (17/06/2010), do Conselho Nacional de Justiça, que prevêem, respectivamente, que a atuação do Poder Judiciário deve se limitar ao encaminhamento do usuário de drogas à rede de tratamento, não cabendo determinar tipo de tratamento, duração, nem condicionar o fim do processo criminal à constatação de cura ou recuperação e que o atendimento a crianças e adolescentes que usam drogas será multidisciplinar e observará a metodologia de trabalho prevista por aquele Conselho Nacional.
Na contramão, a SMAS alardeia que no período de 31 de março a 15 de julho procedeu a 19 operações de retirada de moradores de rua (crianças e adultos) em áreas da cidade, acompanhada das polícias civil e militar. Do total de 1194 pessoas recolhidas, 230 são crianças e adolescentes; no caso destes, se supõe de pronto que possam ser autores de ato infracional – e, por isso, são levados à Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente ou a batalhão policial. Com tal procedimento, a Secretaria se distancia de suas funções socioassistenciais e atua como uma agência de repressão, prestando-se à segregação e aumentando a apartação social que deveria reduzir, desconsiderando, inclusive, que o enfrentamento da fome é determinante no combate ao uso do crack, em especial no caso da população em situação de rua.
Assistimos, hoje, na cidade do Rio, a incorporação da metodologia do choque de ordem pela Secretaria Municipal de Assistência Social, que privilegia uma ação de defesa da “ordem pública”, de natureza higienista travestida de assistência social. Com tudo isto, temos a lamentar o apoio e a parceria de autoridades e órgãos ligados à Justiça a tal medida, quando deveriam atuar na garantia de direitos e cobrar dos gestores públicos a efetivação de políticas públicas e serviços intersetoriais de qualidade.
Não concordamos com uma ação que elege a internação compulsória como tratamento para o uso prejudicial de drogas para os pertencentes das classes populares. Também não estamos de acordo que aqueles que dela fazem uso sejam revitimizados, criminalizados e associados automaticamente a delitos, ao invés de receberem do Estado atenção integral, intersetorial e de qualidade, que permitam desenvolver o conjunto de potencialidades próprias de cada ser social. Recusamo-nos a culpabilizar as famílias como fazem algumas vozes, entendendo que elas precisam receber proteção e atenção integral, conforme preconizado na maioria das políticas públicas. Espanta-nos a iniciativa da Secretaria Municipal de Assistência Social de trazer exclusivamente para o seu âmbito a atenção a estas crianças e adolescentes, observando (ainda no campo estrito da assistência social) que a rede de atendimento municipal não se encontra adequada à tipificação nacional dos serviços socioassistenciais, conforme preveem as normas legais referentes à Política Nacional de Assistência Social e ao Sistema Único de Assistência Social (PNAS/SUAS). Reconhecemos que a política de saúde e, nela, a de saúde mental deve ter intervenção prevalente na situação, dispondo de saberes e práticas que podem viabilizar uma adequada assistência a este público, adotando a perspectiva da redução de danos e utilizando-se das bem sucedidas experiências com os consultórios de rua.
A expansão do uso do crack e de outras drogas baratas disponibilizadas para as classes empobrecidas é um fato complexo, que requer ações diferentes do recolhimento compulsório de pessoas. Exige abordagem processual e o estabelecimento de relações de confiança e adesão que, como se sabe, não provocam efeito imediato e midiático. Requer ainda, uma ação multidisciplinar e intersetorial entre a saúde, a assistência social, a educação e a cultura, o esporte e o lazer, e demais políticas.
Por outro lado, o procedimento em curso não foi apresentado à discussão nos conselhos municipais de assistência social e de defesa dos direitos da criança e do adolescente (CMAS e CMDCA), instâncias formais de controle social e de formulação de políticas. Ignorou a “Política municipal de atendimento à criança e ao adolescente em situação de rua”, objeto da Deliberação 763 de 2009 do CMDCA, órgão colegiado vinculado à própria SMAS. Esta Política foi discutida amplamente por Grupo de Trabalho paritário composto por diferentes secretarias de governo, organizações da sociedade civil e representantes do sistema de garantia de direitos humanos (cf. Resolução 113 – Conanda) e deixou de ser implementada por seguidas gestões.
Na verdade, a gestão pública municipal vem negligenciando seus deveres constitucionais para com as nossas crianças e adolescentes. Faltam investimentos: na rede de saúde mental e de atenção a quem usa e abusa de drogas lícitas e ilícitas (álcool, tabaco, maconha, cocaína, “crack” etc.), em acordo com a lei 11.343/2006; nos conselhos tutelares e em outras medidas estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente; na rede própria de assistência integral e de acolhimento a crianças e adolescentes em situação de rua e a suas famílias; na rede pública de educação e na implementação do “Plano integrado de enfrentamento ao crack e outras drogas”, conforme estabelecido no Decreto presidencial 7179 de maio de 2010.
Assim sendo, observando a magnitude do contexto de vulnerabilidade e de violação de direitos de muitas crianças e adolescentes em nossa cidade, os presentes neste Ato Público e signatários deste Manifesto, reclamam do Poder Público, nas pessoas do Sr. Prefeito e secretários de Governo:
- implementação imediata da “Política municipal de atendimento à criança e ao adolescente em situação de rua”, conforme deliberação 763 AS/CMDCA de 2009;
- ampliação e investimento nas estratégias de redução de danos, nos consultórios de rua, na rede de saúde mental infanto-juvenil: Centros de Atenção Psicossocial infantil (CAPSi), Centros de Atenção Psicossocial na área de álcool e drogas (CAPS/ad) e nos leitos em hospitais gerais;
- ampliação do número de conselhos tutelares, com investimentos, especialmente, na capacitação e treinamento dos conselheiros, na melhoria das condições materiais de trabalho e na qualificação dos serviços prestados;
- implementação do Plano integrado de enfrentamento ao crack e outras drogas (Decreto 7179/2010), implantando Casas de Acolhimento Transitório (CAT´s) que ofereçam ambiente de proteção social e de cuidado integral em saúde, em articulação com os CAPS/ad;
- promoção de imediato reordenamento da rede de atendimento a crianças e adolescentes, em conformidade com a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais – PNAS/SUAS;
- revogação imediata da resolução SMAS nº 20, cessando de pronto a abordagem a crianças e adolescentes nos moldes hoje aplicados, deixando de proceder a internação compulsória e o encaminhamento de adolescentes, julgados prematuramente em delito, à DPCA.
Rio de Janeiro
Julho de 2011
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