A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou legítima a Marcha da Maconha é uma vitória de todos os brasileiros, inclusive dos que são contra a legalização da maconha. Em sua decisão, o STF reafirmou os princípios constitucionais que garantem a todos o direito às liberdades de expressão e reunião.
Direitos fundamentais em qualquer democracia, tais liberdades garantem aos cidadãos o acesso à arena política mesmo quando suas posições desafiam o ordenamento jurídico vigente ou o senso moral dominante. Para garantir à sociedade o ambiente favorável ao debate democrático de idéias, as liberdades de expressão e reunião devem garantir justamente a manifestação das opiniões minoritárias e divergentes.
Legalizamos o debate. A democracia venceu. Porém, não podemos deixar de refletir sobre o significado da necessidade da interferência do STF para garantir direitos consagrados pela Constituição desde 1988.
Durante quatro anos, dezenas de policiais, juízes e promotores demonstraram total desprezo pelos princípios democráticos duramente conquistados após o regime militar. Autoridades responsáveis por defender as leis e a Constituição as afrontaram sistematicamente com o objetivo de tentar impedir um debate com o qual não concordam. Passeatas foram violentamente reprimidas, militantes foram presos distribuindo panfletos e indiciados por apologia ao crime. Cartazes, faixas, panfletos e camisetas foram apreendidos e exibidos à imprensa da mesma forma como se faz com apreensão de drogas, com direito a exibição do brasão do batalhão responsável pelo abuso de poder.
A ditadura no Brasil acabou em 1985, porém, até hoje nossas demandas sociais estão longe de estarem resolvidas. Ainda somos um dos países mais desiguais do mundo. Nosso povo precisa dos direitos fundamentais de expressão e reunião não apenas para defender a legalização da maconha. Precisamos das nossas liberdades para lutarmos por saúde e educação, por saneamento básico e reforma agrária, por direitos humanos e respeito ao meio ambiente. E por muitas outras demandas políticas, sociais, econômicas, culturais e ecológicas.
O desrespeito aos direitos fundamentais demonstrado no caso da Marcha da Maconha revela o quanto ainda temos que trabalhar para remover da polícia e do Judiciário o entulho autoritário que insiste em censurar e reprimir a expressão do pensamento. O objetivo do movimento antiproibicionista não é afrontar a sociedade promovendo apologia do uso de drogas, ao contrário, em todo o momento afirmamos que somos um movimento político que luta pela mudança das leis e políticas públicas sobre drogas.
Defendemos que a "Guerra às Drogas" é um fracasso total do ponto de vista da defesa da saúde da população e ainda provoca efeitos colaterais graves, como a violência e a corrupção. A falência da proibição das drogas é mais do que evidente. Após décadas de repressão, o uso de drogas vem aumentando, bem como a diversidade de drogas disponíveis.
Ao proibir as drogas, longe de conseguir um mundo livre das drogas, os Estados conseguem apenas produzir um mercado clandestino, livre de regras e regulamentações. Quando os movimentos antiproibicionistas pedem legalização, regulamentação ou descriminalização o que estão propondo é uma estratégia que devolva aos estados a capacidade de manter sob controle o mercado de drogas, estabelecendo regras e normas. E ainda poderíamos cobrar impostos e acabar com o enorme desperdício de verbas e recursos humanos utilizados na repressão,realocando os recursos para políticas de prevenção, redução de danos e tratamento.
A violência resultante das disputas entre as quadrilhas de varejistas também é consequência direta da proibição, assim como a violência das ações policiais contra o tráfico. A ilegalidade das drogas é um dos principais fatores de corrupção em todo mundo, pois não existe tráfico sem conivência de autoridades corruptas.
O debate está apenas começando, ainda bem que agora sem a mão pesada do Estado sobre um dos lados. E este debate é fundamental, não é fruto do egoísmo daqueles que querem apenas fumar maconha, ao contrário, é fruto da generosidade daqueles que foram para as ruas e desmoralizaram a censura em nome de um projeto de paz.
*Renato Cinco é sociólogo e ativista da Marcha da Maconha
Publicado no Globo On-line no dia 17/06/2011.
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